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Monumentos do passado e do presente

“Cabe a São Paulo fazer uma afirmação que fixe o seu propósito de lutar para que, no naufrágio em que outros povos se afogarão, se salve esta bela e nobre Nação, que é o Brasil, e com ela os puros ideais do homem cristão. A ideia da Pátria grande e forte, orientada no sentido do progresso social, dentro dos sentimentos tradicionais da família e da religião, é o alimento de que se nutrem os paulistas para dar um sentido e um fim aos frutos de sua admirável  atividade.  (…)  Não  há  quem  desconheça  a concepção de Brecheret. É uma arrancada de bandeirantes para a conquista da Terra Virgem. É um instantâneo da vida de uma Bandeira (…). Os homens, surpreendidos numa  subida,  caminham  para  o  alto:  é  o  idealismo paulista em ação. (…) Dois bandeirantes, os chefes, vão na frente, a cavalo: é o princípio da autoridade, o mais forte esteio da civilização, que o comunismo tenta destruir. As  figuras  decrescem  em  tamanho:  é  a  hierarquia, inseparável da disciplina, e um dos mais belos princípios da organização social (…). de tudo isto é que o Brasil precisa,  propõe-se  que  este  monumento  seja  levantado numa  praça  de  São  Paulo,  atestando  o  desejo  dos paulistas  de  renovar  os  princípios  e  os  feitos  que constituíram  os  fundamentos  da  nacionalidade.  Pela Avenida Brasil (…) sairão, como saíram, grandes grupos de bandeirantes que iniciarão uma nova etapa de sua obra, a serviço do Brasil (Salles Oliveira, 1936/1953,

p.13).” (https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/issue/view/828/Arquivo%20Completo)

Saindo da Av. Paulista, marchamos em direção a essa estátua de pedra, chamada de Monumento às Bandeiras, que homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Lá subimos com nossas faixas, e hasteamos um pano vermelho que representa o sangue dos nossos antepassados, que  foi  derramado  pelos  bandeirantes,  dos  quais  os brancos  parecem  ter  tanto  orgulho.  Alguns  apoiadores não-indígenas entenderam a força do nosso ato simbólico, e pintaram com tinta vermelha o monumento. Apesar da crítica de alguns, as imagens publicadas nos jornais falam por si só: com esse gesto, eles nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se  em  um  monumento  à  nossa  resistência. Ocupado  por  nossos  guerreiros  xondaro,  por  nossas mulheres e crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio  público,  pois  deixou  de  servir  apenas  ao simbolismo colonizador das elites  para dar voz a  nós indígenas, que somos a parcela originária da sociedade brasileira.  Foi  com  a  mesma  intenção  simbólica  que travamos  na  semana  passada  a  Rodovia  dos Bandeirantes,  que  além  de  ter  impactado  nossa  Terra Indígena no Jaraguá, ainda leva o nome dos assassinos. (…) Ficamos muito tristes com a reação de alguns que acham que a homenagem a esses genocidas é uma obra de arte, e que vale mais que as nossas vidas. Como pode essa estátua  ser  considerada  patrimônio  de  todos,  se homenageia  o  genocídio  daqueles  que  fazem  parte  da sociedade brasileira e de sua vida pública? Que tipo de sociedade  realiza  tributos  a  genocidas  diante  de  seus sobreviventes? Apenas aquelas que continuam a praticá-lo no  presente.  Esse  monumento  para  nós  representa  a morte. E para nós, arte é a outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade  e  foi  isso  que  se  realizou  nessa  intervenção. Aguyjevete pra todos que lutam! (Santos Tupã, 2013).

(https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/issue/view/828/Arquivo%20Completo)

No debate que se estabelece acerca do valor e do sentido da memória construída sobre os monumentos públicos, há uma série de fatores que são considerados na crítica ou exaltação dos mesmos.

Os bustos e estátuas de homens eleitos como personagens históricos são um alvo, digamos, fácil para esta crítica. Personalistas, encarnam em uma só figura uma idealização que nunca passa no teste da averiguação histórica, e portanto são esses os monumentos mais comumente atacados e discutidos quando das revoltas contra essa memória hegemônica.

O “Monumento às bandeiras”, localizado entre a Assembléia legislativa de São Paulo e o Parque do Ibirapuera, é tema de debates e ações diretas já há vários anos. Tem em sua representação uma diferença importante em relação à boa parte das estátuas espalhadas pelo mundo, pois não representa uma pessoa em específico.

O monumento, projetado pelo ítalo-brasileiro Victor Brecheret, foi idealizado ainda no início da década de 1920. Adepto da estética modernista, Brecheret se alinhou com a elite intelectual paulistana responsável pela Semana de Arte Moderna de 1922, e vendeu seu talento para os propósitos dessa elite na época.

O caráter político da obra atravessou todo o longo período entre o projeto e sua inauguração – quase 30 anos depois. Pensado como símbolo da expansão urbana da cidade que crescia de forma acelerada no início do século XX, o projeto foi postergado após a tomada de poder por Getúlio Vargas em 1930 e o golpe de 1937.

Para os ensejos nacionalistas do grupo político representado pelo líder gaúcho, a imagem soberana e pioneira dos bandeirantes não era o tema preferencial, ainda mais após os embates de 1932. O projeto só seria retomado no ano de 1946, após o fim da ditadura do Estado Novo. 

A citação do ex-governador de São Paulo Armando de Salles Oliveira, que abre esse texto, explicita bem os objetivos de construção de imagem por trás da empreitada da elite paulistana. A estética modernista do projeto, dando forma a esse monumento não personalista de figuras sem nome, que representa uma ordem clara de hierarquia não só no passado, mas no presente da cidade, caía como uma luva nos projetos de hegemonia cultural reforçados por essa elite após o fim do regime varguista.

A ideia do culto “às bandeiras” como movimento responsável por “desbravar” o território colonial tinha como função atribuir pioneirismo ao povo paulista como um todo. A ideia de que foi possível unificar um território continental onde viviam populações com interesses distintos seria a prova de força desse passado paulista, ao qual todos os brasileiros deveriam a configuração atual do território – e da desigualdade, porque não?

Colocando juntos no mesmo monumento figuras que aludem a homens brancos, negros e nativos, a obra contemplaria não uma figura histórica específica, mas sim todo um processo de suposta construção nacional a partir da dominação, claramente hierarquizada e desigual, onde o papel de cada uma das “raças” estaria definido no passado para justificar o presente.

Na crítica objetiva dessa construção racista, a fala de Marcos dos  Santos  Tupã,  Líder  da  Comissão  Guarani Yvyrupa, acerca das manifestações realizadas no ano de 2013, deixam claras as razões pelas quais a intervenção no monumento problematiza essa memória hegemônica de um passado glorioso.

A publicização dessa crítica é fundamental, tanto por um certo desconhecimento geral acerca do que o monumento em si representa, quanto por colocar no centro do debate público o tema de como essa memória hegemônica justifica desigualdades e violências historicamente construídas, cujo impacto no presente é perceptível.

Fica então o questionamento: a permanência do “Monumento às bandeiras” serve às populações historicamente marginalizadas – tão cruamente representadas na obra – como referencial para acusar publicamente o papel marginalizado que essa história hegemônica atribui a elas? Ou serve para reforçar esse papel na hierarquização desigual que nos constitui?

Independente da interrupção do projeto artístico por motivos políticos entre os anos 20 e os anos 40, suas possíveis ressignificações não fogem muito do caráter genocida e racista do projeto de colonização nacional. Hoje, é possível lutar por ressignificá-lo à luz desse papel nocivo? Ou seria melhor que essa imagem que louva a prática das Bandeiras fosse apagada do espaço público de São Paulo?

Responder essas questões intervindo na realidade – como fizeram os manifestantes citados em 2013 – é fazer a História, disputar narrativas e trazer à luz a força dos sujeitos históricos marginalizados. Porém, fica claro que não há uma resposta pronta, nem um caminho único a seguir.

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