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Abolição pela metade

“PÁTEO DO COLÉGIO, 23 de outubro de 1887:

As praças foram agredidas a cacete e os desordeiros procuravam desarmá-las, o que não conseguiram por ter acudido a força de cavalaria, à qual se ordenou que dispersasse os amotinadores. Vendo-se, porém, que o tumulto aumentava e com ele o número de negros, que erguiam VIVAS À LIBERDADE e MORRAS AOS ESCRAVOCRATAS, estabelecendo desta forma o pânico entre as famílias que estavam no jardim do Palácio, mandou-se que os portões de entrada fossem guardados por praças da cavalaria, sendo postada uma força em frente ao Palácio, a fim de salvaguardar as famílias contra os ataques dos amotinadores”.

No setecentos, o sossego do cidadão de bem paulista era posto em xeque por bandos numerosos de índios, mamelucos, negros e mulatos que, armados de paus e facas, andavam ameaçadoramente pelas ruas. Em outubro de 1887, meses antes de assinarem o papel que reconhecia a derrota da escravatura, nesse lugar de poder onde ainda hoje funciona um tribunal e se recorda da fundação da cidade no Páteo do colégio, os soldados que guardavam o jardim do Palácio da justiça foram atacados por negros – desordeiros – que tentavam agredi-los e tomar o palácio. Mesmo com a chegada da Cavalaria, a negrada ainda gritava MORTE AOS ESCRAVOCRATAS [sensação sensacional firma, firma, firma fogo nos racistas]. Os patrões brancos se esconderam lá dentro, assim como se esconderam atrás de uma lei Áurea, que só fez tentar esconder a história real: quem aboliu a escravatura foi a luta negra.

Luta negra que aconteceu com armas na mão no Palácio da Justiça, mas também deixando de trabalhar quando dava. Escondendo dinheiro na roupa ou no cabelo mas também trabalhando, trabalhando melhor, ganhando a confiança dos sinhozinho. Roubando, fazendo bico, vendendo doce na rua, limpando casa de madame, se matando. Enquanto criavam leis pra proibir o charlatanismo, brancos corriam atrás da rezadeira com criança pra benzer. A capoeira, proibida desde que surgiu aqui, nunca deixou de ser praticada também. A resistência se deu de várias formas, porque toda forma de existir sob a escravidão era uma forma de resistência.

Na imagem, residência de negros paulistas que se mudaram para o Rio de Janeiro no pós-abolição. Acervo Instituto Moreira Sales. Na citação, trecho do livro História da cidade de São Paulo no séc. XVIII, citado por DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. Senac, 2003.

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